A caminho dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, o Maisfutebol lança uma série de conversas com atletas portugueses já qualificados. São 44 até agora, ainda com várias modalidades por definir. Estas são as suas histórias.

Maria Inês Barros tinha apontado à qualificação para os Jogos Olímpicos de 2028, mas cá está ela. Aos 22 anos, qualificou-se para Paris 2024, onde se tornará a primeira mulher a representar Portugal no tiro com armas de caça. Para a campeã da Europa de fosso olímpico, que vai tentando conciliar a alta competição com o mestrado em medicina veterinária, tudo começou cedo.

O tiro é assunto de família, primeiro por causa do avô, que gostava de caça e se iniciou nos campos de tiro, e depois do pai, que praticou tiro de competição. Inês diverte-se a contar como a sua própria ligação à modalidade começou ainda bebé. «A minha primeira viagem de avião foi por causa do tiro, eu tinha um mês e pouco de idade. O meu pai teve de ir para os Açores para uma prova e levaram-me.»

O que valeu uma história familiar que ficou para sempre. «Os meus pais tinham o meu Bilhete de Identidade, só que como eu era um bebé tão novinho, suspeitaram dos meus pais. Então o meu pai teve de pegar em mim ao colo, mesmo à frente do guarda, que estava com o BI ao lado a comparar se era mesmo eu. Pensavam que estavam a raptar-me ou assim.»

Começou ainda criança a acompanhar o pai. Primeiro por brincadeira, na caça e também nos campos de tiro. Mas depois tomou-lhe o gosto, até porque as suas duas irmãs também se dedicavam ao tiro. «O que me levou a interessar-me mais pelo tiro foi a ligação à minha família. E também porque era um convívio muito grande. Em Portugal as provas nem parecem competição, é mais um ambiente de estar a desfrutar do momento, a relaxar, ao ar livre.»

Do tiro como brincadeira ao título europeu

De início, nem sabia que aquilo que fazia mais ou menos a brincar podia ser um desporto olímpico. «Eu não sabia que o tiro era uma modalidade olímpica até os meus 11 anos, só quando vi a prova feminina no na televisão em Londres 2012 é que percebi. Não diria que foi aí que comecei a ter essa ambição, mas desde que comecei a atirar, ou seja, desde que tirei a licença, que esse é o meu grande objetivo. Só o estabeleci para 2028, não estava nada à espera de me conseguir apurar para 2024.»

«Este ciclo ia coincidir com a minha transição de júnior para sénior, uma altura em que normalmente os atiradores não conseguem grandes resultados. Não sei se é por causa da pressão da passagem a sénior, mas é o que costuma acontecer. Ou seja, neste ciclo estava a focar-me em fazer a transição para sénior, a ver se conseguia manter o mesmo nível», diz a atleta natural de Penafiel.

Mas as coisas aconteceram muito rápido desde que Inês tirou a licença de competição, aos 14 anos. Começou depressa a somar grandes resultados. Foi bronze no Europeu de juniores em 2019 e prata dois anos mais tarde. Em 2022 conseguiu uma medalha de prata nos Jogos do Mediterrâneo e em 2023 venceu a Taça do Mundo, no Cairo e foi campeã do mundo na prova de equipas mistas, ao lado de João Paulo Azevedo.

Seguiram-se os Europeus de Osijek, na Croácia, em setembro passado. Completou a qualificação com 73 tiros certeiros aos pratos em 75 possíveis, e na final, onde apenas chegam seis atletas, fez 43 em 50. Deixou a concorrência para trás, subiu ao lugar mais alto do pódio e de caminho garantiu a inédita vaga feminina para Portugal nos Jogos Olímpicos.

«Estou radiante, porque era um grande objetivo», diz Inês Barros, passados sete meses sobre as emoções daquele dia. «Sinto que é uma grande responsabilidade, porque vai ser a primeira vez que vamos ter alguma representação. Ou seja, fazer boa ou má figura vai depender de mim agora.»

Inês Barros fala com o Maisfutebol entre competições. No final de abril, no Qatar, terminou o torneio final de qualificação olímpica no segundo lugar e no início deste mês foi oitava na etapa da Taça do Mundo de Baku.

O treino da atiradora «persistente e perfeccionista»

Fala com naturalidade sobre o que faz e sobre o que a distingue como atleta. Demora mais a pensar na sua principal qualidade do que no maior defeito. «Acho que sou muito persistente. No desporto todos temos momentos altos e baixos, mas eu mesmo depois dos momentos mais baixos, consigo recuperar a tempo e manter boas prestações.» Elabora mais sobre a sua característica menos positiva: «Acho que eu sou um bocado perfecionista. Avalio muito o que fiz de mal, os meus erros durante a competição. Durante a pranchada, que são 25 pratos, se fiz uma emenda ou parti mal o prato, fico a pensar porque é que fiz isto ou aquilo e quando já estou no próximo prato, ainda estou a pensar no último. Para mim é um defeito, porque supostamente no tiro, a partir do momento em que fazes o zero, deves esquecer e seguir em frente.»

Quanto à pontaria, também se trabalha, diz. «É inato, mas também se treina. Há pessoas que parece que já nascem com um talento no tiro. E há pessoas que treinam até conseguirem alcançar o ritmo de um atleta de alta competição.»

No tiro, o treino passa por várias áreas, explica Inês, a falar sobre a sua rotina. «Normalmente treino pelo menos duas vezes por semana. Tenho psicólogo, tenho fisioterapeuta e faço ginásio em casa, porque tenho as máquinas em casa. Eu sou uma atiradora rápida e que atiro à zona, para mim o mais importante é a elasticidade, a agilidade e estar bem a nível muscular, não é tanto força. Mas há atiradores que fazem muitos treinos, numa lógica mais física.»

«Quis ser veterinária desde que me lembro»

Pelo meio, vai tentando conciliar a competição com os estudos. Não é fácil e o apuramento olímpico já a levou a alterar os planos. «Tenho conseguido conciliar tudo, só que as minhas provas internacionais coincidem sempre com o segundo semestre e nessa altura fico um bocadinho para trás. Agora, como já estamos nesta altura dos Jogos, decidi neste semestre inscrever-me apenas em metade das cadeiras. Tem sido um grande desafio. Porque à medida que avança o curso fica mais prático e tenho de fazer mais coisas, como turnos no hospital, ambulatórios, ambulatórios nas explorações…. É difícil conciliar.»

Mas ser veterinária é a sua vocação desde criança. Também aí isso fico claro muito cedo. «Eu quis ser veterinária desde que me lembro. Na escola primária, naqueles papeizinhos que nos mandavam preencher, eu escrevia que queria ser veterinária. Sempre tive animais em casa. Sempre tive cães, tive até cabras em casa. Tive contacto com porcos, com galinhas. Achei desde sempre que aquela ia ser a minha vocação. Depois surgiu a caça com o meu pai. O que achava piada era ver o meu cão no meio do monte. Parecia uma cabrinha a saltar, tão contente que estava. Eu no início ia só mesmo calcar terreno com o meu cão. E pelo contacto com a natureza também.

Inês é caçadora e diz que não há aí nenhuma contradição com a profissão que escolheu. Ela defende uma abordagem ética da caça. «Há limites na caça, regras apertadas e coimas muito pesadas. E para mim o papel do caçador é também estar no campo, contribuir para a conservação da natureza e estar atento a vários sinais. Os caçadores podem ser muito importantes na deteção de doenças, porque eles estão no monte o dia inteiro, observam muita coisa. Animais que tenham sinais de doenças, eles conseguem ver e comunicar. Ou mesmo catástrofes. Se houver um incêndio, eles conseguem avisar mais rápido porque estão no local.»

Inês Barros sabe que os seus interesses, tal como o seu desporto, são «pouco comuns». Na Universidade do Porto, muitos dos seus colegas ouviram falar de tiro olímpico pela primeira vez por causa dela. «Foi basicamente a descoberta de uma nova modalidade e que também é modalidade olímpica», conta. «Quando os meus colegas perceberam que eu praticava a um nível já internacional, de alto rendimento, ficaram espantados. Mas foram espetaculares e começaram até a seguir-me. Às vezes acompanham as finais também, quando não coincide com o horário das aulas.»

As questões em volta de uma modalidade a perder expressão

O tiro tem longa tradição olímpica, presente desde a primeira edição dos Jogos da era moderna, em 1896. E Portugal tem no palmarés uma medalha no fosso olímpico, a prata ganha por Armando Marques em 1976. Mas a modalidade tem vindo a perder expressão e agora luta para conseguir manter-se no programa olímpico.

A presença em Los Angeles 2028 está garantida, mas para lá disso é uma incógnita. O desporto tem associadas algumas questões que condicionam a sua popularidade. Desde logo, o facto de lidar com armas. «Em Portugal há a ideia, que para mim é errada, de que as armas são perigosas. Na verdade não é bem a arma que é perigosa, são as pessoas. Porque a arma não faz nada sozinha», diz Inês. «Mas eu acho que também por causa disso o nosso desporto não é tão conhecido ou não é tão associado a boa comunicação.»

Há ainda a questão ecológica do uso de chumbo nas munições. Também esse aspeto, defende Inês, está nesta altura mitigado pelos regulamentos. «Há regras apertadas. Os campos de tiro são obrigados a recolher o chumbo. E alguns até recolhem as buchas, que são as peças de plástico entre a pólvora e o chumbo.»

Mas tudo isso, aliado à pressão de novas modalidades para fazerem parte do programa, pode complicar o futuro do tiro olímpico, admite a atiradora portuguesa. «Se calhar é difícil manterem-se nos Jogos Olímpicos desportos que não tenham tanta popularidade, que não são tão bem vistos, tão populares. A nossa modalidade tem sofrido um bocado com isso. Há cada vez mais interesse em novas modalidades como o surf ou o skate e então outras modalidades vão caindo. Sim, acho que estamos a sofrer um bocado com isso.

Os custos e a competição com profissionais

O futuro desportivo de Inês Barros vai também depender dessa evolução. Porque o tiro exige tempo e dinheiro. Além do investimento inicial na arma, colete e óculos, que pode envolver alguns milhares de euros, há o custo dos cartuchos. «Uma caixa com 250 cartuchos, que dá para fazer uma prova, sem contar com a final, custa à volta de 90 euros», exemplifica Inês.

O que limita o acesso à modalidade para quem queira começar. «A arma pode ser um investimento de uma só vez, mas os cartuchos, os treinos, as inscrições nas provas, é um bocadinho caro. No início é um bocado mais complicado, mas a nossa Federação tem conseguido melhorar a nível de patrocínios e de gestão, nos juniores e assim. Quem está a começar agora já tem muito mais apoios que antigamente.»

É mais difícil em Portugal do que na maioria dos países mais fortes na modalidade, onde os atletas de elite estão normalmente ligados a instituições públicas, muitas vezes policiais ou militares. «Acho que só em Portugal é que não somos profissionais. Quase todos os atletas internacionais trabalham na polícia ou para o Estado. Ou seja, têm uma ligação profissional, mas praticamente só praticam este desporto. Depois, quando deixam a vida desportiva, já têm uma carreira onde ingressar.»

Em teoria, o tiro é uma modalidade que se pode praticar até uma idade avançada. Mas, apesar de ter estatuto de alta competição, Inês sabe que isso não é suficiente e que, a certa altura, terá de tomar uma decisão sobre o seu futuro. «Vou continuar até 2028, isso é certo, mas depois depende muito do que decidirem em relação aos Jogos de 2032. E também depende de como correr a minha vida a nível profissional. Já estou no quinto ano, entretanto acabo o curso e tenho de trabalhar.»

Das expectativas realistas ao sonho da medalha (e uma claque ruidosa)

Para já, no entanto, o foco são os Jogos Olímpicos. Inês Barros antecipa com expectativa o que irá viver, não em Paris mas em Chateauroux, o centro das competições de tiro olímpicas, que fica a 300 km da capital francesa. Ela não esconde que sonha com uma medalha, mas prefere não elevar muito as expectativas.

«Acho que todos os atletas têm o sonho da medalha. Em termos realistas, se ficar na primeira metade da tabela já é bom. Mas isto sou eu, que gosto de estabelecer sempre as metas mais baixas», sorri. Na verdade, ela acredita que pode lutar com as melhores: «Acho que sim, porque até agora tenho conseguido boas prestações, com uma medalha de vez em quando. E as atletas que vão estar lá são as atletas com que eu estou a lidar neste momento em todas as provas. Mas elas são mais experientes, já se conhecem melhor. Eu ainda estou a tentar descobrir qual é que vai ser a minha melhor forma, sem nunca ter tido a experiência dos Jogos Olímpicos. Ou seja, vou dar o meu melhor, vou fazer o que acho que preciso de fazer e vou esperar que isso resulte.»

Já tem claque garantida. «O pessoal aqui de casa já tem os bilhetes e tudo. Vou lá ter a minha família, a minha irmã, os meus pais e o meu namorado», diz. Prometem apoio entusiasta e ruidoso. Talvez até de mais, ri-se Inês. «Já andam a falar de levar para lá buzinas e não sei mais o quê. Acho que ainda vão ser expulsos.»