E se, de repente, a vista escurecesse, os ouvidos se tapassem e tudo aquilo que antes conhecia como mundo desaparecia por completo.

Agora imagine um jogo de futebol sem bola, jogadores ou treinadores. Sem cor e sem som.

Na Colômbia o futebol atrai multidões, é a paixão de um povo. Os estádios enchem-se, criando espetáculos de luz, cor e som. Muita gente a acenar para as câmaras, a torcer pela equipa, a roer unhas, a gritar...

E uma de costas para o relvado.

É José Richard, um cego-surdo que mantém viva a paixão pelo futebol e por toda a envolvência que um jogo é capaz de ter.

Mesmo à frente, a agarrar-lhe as mãos, o amigo César Daza não deixa passar qualquer pormenor despercebido. Conheceram-se em 2014 e foi através dele que José voltou a sonhar com a «pelota». Não a jogada, a sentida.

José (à esquerda) e César são adeptos de clubes rivais mas vão à bola juntos (foto: arquivo pessoal)

Aos 36 anos, o «hincha» do Millonarios faz-se sempre acompanhar do amigo e intérprete, de 40, curiosamente adepto do grande rival de Bogotá, o Santa Fe.

«O José Richard tem mau gosto (risos) mas só usamos essa rivalidade para nos rirmos, até porque interpretar uma pessoa cega-surda requer uma conexão especial. Eu conheço-o bem, o seu espírito e o seu coração. Por comparação, ele também me conhece muito bem e vamos aprendendo um com o outro», disse César, em conversa com o Maisfutebol.

José Richard sofre de Síndrome de Usher, doença hereditária caracterizada pela deficiência auditiva e perda progressiva da visão. Aos 9 anos ficou surdo e aos 15 perdeu a visão.

Depois de conversas com César, José decidiu desafia-lo a fazer algo inédito.

Ele queria volta a sentir um jogo de futebol e pediu-me para interpretar um jogo da seleção colombiana na TV, mas através de uma tábua. Na altura pensei que era uma loucura (risos), que não era possível transmitir um jogo de futebol a uma pessoa que era cega e surda e que não fala. Tenho experiência em lidar com este tipo de situações, como intérprete, mas nunca me ocorreu a ideia de interpretar um jogo de futebol sobre uma tábua»

A verdade é que a ideia de José funcionou e não tardou muito para que a pusessem em prática num estádio. De há dois anos para cá, ambos têm vindo a aperfeiçoar a técnica.

«Através de uma tábua de madeira, o José absorve alguns ruídos acústicos e ele, sendo cego, pode sentir mais. Na madeira tem mais sensibilidade, sente tudo o que há no estádio, desde os bombos, aos cânticos, aos gritos. Eu também procuro interpretar tudo o que se passa no estádio, desde o número de pessoas até ao que as pessoas ao seu redor estão a fazer», explicou.

«Fútbol con la piel», uma nova linguagem em potência

«Dentro do campo descrevo-lhe vários momentos: golos, remates perigosos, foras de jogo, cantos, cartões amarelos ou vermelhos, etc. A minha mão direita é uma equipa, a esquerda a adversária. Quando um jogador tem a bola, chego o dedo do meio mais à frente e simulo uma corrida. Imaginemos que vêm três adversários tirar a bola, então eu terei de usar os restantes quatro dedos da mão esquerda para simular uma tentativa contrária. Ao princípio era complicado, mas a partir de agora há muitas mais coisas que se podem fazer»

Foi desta forma que César explicou de forma muito redutora a nova linguagem que, por necessidade do amigo, foi levado a inventar. Chamaram-lhe «Fútbol con la piel», futebol com a pele.

Embora seja um método que ainda precisa de ser limado, o intérprete confessou que um dia gostaria de o ver tornar-se universal, de maneira a permitir que todos os cegos-surdos possam desfrutar de um «partido» de futebol.

«Seria algo muito importante, porque é uma questão de necessidade. Para mim seria espetacular fazer algo para todo o mundo. Não sei se seria através de mim ou de tecnologias. Seria um desafio para os informáticos desenvolverem tipo uma máquina de interpretação. Mas era essencial, porque estamos a falar de inclusão», referiu, acrescentando:

«O exemplo do José é um convite a romper com a nossa incapacidade mental, com a nossa cegueira, porque vemos, mas na realidade não vemos, ouvimos mas não escutamos, muitas das vezes. Tem sido uma experiência bonita. Somos ferramentas de paz nos estádios e isso não tem preço.»

José herdou da família o gosto pela indústria panificadora e gostava de ter um espaço próprio (foto: arquivo pessoal)

«Conhecer Cristiano Ronaldo seria o momento de uma vida»

José e César começaram de forma tímida, mas rapidamente se tornaram atrações nos estádios de futebol, um pouco por toda a Colômbia. Os convites não param de chegar, incluindo de outros países, como Brasil, Argentina ou Estados Unidos.

«A reação das pessoas tem sido gira, porque ficam mais atentas a nós do que ao jogo, no princípio. Tem muito impacto ver uma pessoa de costas para o jogo e a outra a segurar-lhe nas mãos num estádio. “Ele é cego, eu sabia” dizem alguns. Ficam surpreendidos é quando lhes digo que também é surdo. Aí parece que nos damos conta de que, na realidade, os incapacitados somos nós, que estamos sempre a colocar pedras no caminho»

O sonho de ambos, revelou, é poder interpretar um jogo na Europa. Aos poucos, os ecos da sua história vão chegando ao Velho Continente, onde David Luiz, por exemplo, fez questão de partilhá-los através das redes sociais.

Sendo colombiano, ambos têm o sonho de poder conhecer dois dos «maiores embaixadores do país no estrangeiro», James e Falcao. Ainda assim, é o nome de um português que faz os corações palpitar.

«Cristiano Ronaldo. Ui! Seria o momento de uma vida para nós. Quem sabe se ele um dia nos manda uma mensagem ou assim. Era um sonho. Só o facto de o David Luiz ter partilhado aquilo já nos deixou muito felizes»

O lado bom do futebol aos olhos de quem não o consegue ver, na realidade, mas consegue senti-lo. Acima de tudo um exemplo de como fintar o destino e alcançar algo maior do que qualquer título: o respeito.

«Há muitos estádios onde se mata pela cor da camisola. Como diz o José, mais do que uma camisola, o que importa é o respeito por todos. Da mesma forma que ele pode interpretar um jogo de futebol em paz, qualquer um de nós pode faze-lo também».