«Só em Hiroshima morreram mais de 140 mil pessoas. Com estes números haveria espaço para pensar em futebol?» A questão, seca e pertinente, lembra a dimensão da tragédia e coloca em causa a própria reportagem. Foi colocada por Stephen Ole, um inglês radicado em Hiroshima, quando questionado pelo Maisfutebol acerca do tema deste trabalho.

Depois de Chernobyl, a viagem pelas grandes tragédias da história da humanidade leva-nos ao Japão, quatro décadas mais cedo. Em Agosto de 1945, Hiroshima e Nagasaki entram para a história pelos piores motivos. No culminar da II Guerra Mundial, os Estados Unidos largam uma bomba atómica em cada uma das cidades. Algo inédito e nunca mais repetido. Morrem 140 mil pessoas em Hiroshima, para cima de 80 mil em Nagasaki. No meio deste cenário, encontrar o rasto do futebol é tarefa complicada. Estamos, recorde-se, na década de 40, vinte anos antes de ser criado o campeonato japonês.

«Não é fácil encontrar vestígios de futebol naquela era. As actividades desportivas cessaram durante a guerra, para que o esforço dos japoneses se centrasse, apenas, no conflito. Aos poucos, o cenário foi mudando, até porque numa fase de reconstrução, as pessoas precisam de distracções para buscar energias perdidas. Aí sim, não só o futebol, como todo o desporto, tiveram papel fundamental», explica Cesare Polenghi, jornalista e historiador especializado no desporto asiático.

Quando o futebol não é o desporto do povo

A primeira equipa de futebol que se conhece em Hiroshima era formada pelos trabalhadores da Mazda, uma empresa local de fabrico automóvel. Em 1938 nascia o Toyo Kogyo Syukyu Club, bem antes de o fenómeno futebolístico chegar a Nagasaki.

«Naquela altura, os jogos eram jogados e assistidos apenas pelos trabalhadores da empresa. Isso fez com que a equipa nunca fosse vista como uma equipa do povo de Hiroshima. Era a equipa da Mazda», explica Stephen Ole.

Com o fim da guerra, a busca por distracções aumentou, mas nem assim o futebol saiu a lucrar. A equipa de basebol local, o Hiroshima Toyo Carp, centrou as atenções, como explica Shephen Ole : «O Carp estava muito mais ligado à reconstrução da cidade. Construíram um estádio perto do Genbaku Dome [ndr. Memorial às vítimas da tragédia], na zona do epicentro. Isso atraiu a atenção das pessoas, mais do que a equipa de futebol. Entre uma equipa de uma empresa e outra que era, verdadeiramente, a equipa do povo, todos escolhiam o mesmo.»

Cesare Polenghi reitera o discurso de Ole acerca da importância do Carp na reconstrução de Hiroshima. «Serviu para espevitar as pessoas. O próprio nome diz tudo. Carp vem de carpa, o peixe. Nesta zona, é um símbolo de crescimento. Nada foi ao acaso», explica, lembrando que o povo chegou a ajudar financeiramente a equipa, em alturas de maior celeuma.

Sanfrecce Hiroshima: o baluarte actual

Ainda assim, a semente do futebol acabou por germinar. Ainda com o nome da Mazda no brasão, a equipa venceu os quatro primeiros campeonatos japoneses. O avanço para o nome próprio, Sanfrecce Hiroshima, só se deu em 1992. «Foi o passo decisivo para unir o povo à volta da equipa. A popularidade do basebol parecia inatacável, mas o número de sócios tem vindo a aumentar», conta Ole.

Distante dos danos causados pela bomba atómica e com uma ténue ligação à reconstrução do país, o Sanfrecce vai tentando combater a hegemonia do basebol. Joga na I Divisão do Japão e, inclusive, vai sendo notícia por algumas...imitações. Depois de fazerem com sucesso o que outros falharam, imitando o famoso penalty à Crujjf, com dois toques, saltaram para a ribalta ao copiar os festejos dos islandeses do Starnjan. Provam, assim, que a alegria do futebol faz a calamidade voltar ao seu lugar: o de uma triste recordação.

Veja as celebrações do Sanfrecce: